Autor: Lincoln J.C. Almeida
(O desamparo contemporâneo pela óptica do movimento instituinte)
Alvorada do século XXI! A biologia e as neurociências reinam absolutas na disputa pelas verdades epistemológicas sobre a estrutura e o funcionamento da mente. A moderna psiquiatria, dita ateórica, fundamentada nas neuroimagens, faz atravessamentos vorazes nos processos de subjetivação e favorece, afinada à maquinária midiática de guerra das multinacionais farmacêuticas, uma construção de identidades empobrecidas, emburrecidas e homegeinizadas dentro do que a ‘sociedade do espetáculo’ pós-moderna (Debord, 1992) exige de um cidadão comum, isto é, que não questione, não pense, nem se rebele; apenas obedeça.
Ser normal é tarefa das mais fáceis na atualidade, desde que se produza, ganhe dinheiro, consuma, assista aos canais globais, tenha gostos simplificados pelas artes baratas e, diante de qualquer alteração, crise ou questionamento mais aprofundado, busque um profissional para alívio dos sintomas com o arsenal das novas drogas lícitas. Enfrentamentos com o ser estão fora de moda. O american way of life condena loosers (perdedores) ao ostracismo.
Surge com isso, cada vez mais, aquilo que passa a ser conhecido como bio-identidades (Lima, 2005) – formas do sujeito se definir e olhar o outro através de pressupostos e terminologias ligadas ao funcionamento neuroquímico cerebral . A individuação não seria mais centralizada no ser psicológico que busca encontrar seu espaço no que sente em sua existência e em seu território de subjetividade. Confuso, passa a não distinguir mais os verbos ter e ser, moldando-se ao que a biologia cerebral localizacionista lhe dita (a ‘moderna frenologia’) e naquilo que pode ter materialmente.
A normatização do comportamento atinge uma gama infindável de nomes com status quo de doenças, transtornos e patologias. Todas tratáveis por drogas psicofarmacológicas que o impulsionam a crer no alívio absoluto como finalidade última de um processo de ajuda ou cura. Quando muito, uma psicoterapia infantilizada e domesticante. Crianças mais agitadas e desatentas são chamadas de TDAH (transtorno de déficit de atenção com hiperatividade), não mais de crianças levadas; variações do humor, como bipolaridade e os enfrentamentos existenciais como depressão (o Mal do século).
Enquanto esse panorama se descortina, homens-bomba, mísseis tele-guiados, tsunamis, epidemias virais ameaçam o planeta e mega-corporações brindam os bilhões e bilhões de dólares ganhos no grande mercado da guerra, do sexo, da fome, da doença, indiferentes à miserabilidade de 2/3 do planeta. Tal como célula tumoral, se alastram com voracidade assustadora consumindo aos poucos a própria Terra, ameaçando como nunca a única morada de que dispomos e o futuro de toda vida sobre ela. Vivemos assim em plena ditadura hy-tec que seduz, mitifica e impõe a aquisição de inúmeras invenções inebriantes, desviando a atenção do grande descaso com tudo o que pulsa, tem vida e padece.
O preço, entretanto, é alto. Sinais de falência são anunciados em cada setor da grande teia que envolve tudo e todos. Como num mecanismo de retaliação, floresce o fanatismo religioso em suas formas mais violentas, as organizações criminosas, o narcotráfico internacional, o comércio de fetos, de órgãos e todo tipo de fúria que a natureza tem mostrado nos últimos anos. Seriam as organizações terroristas espectros de redes instituintes capturadas pelo ‘lado negro da força’?*
O homem, amedrontado e atônito, feito cria abandonada, berra, urra, mata e morre. Perdido, após a queda das utopias terrenas (Kepel, 1991) é arrebanhado pelo consumismo desenfreado que oferece uma camuflagem temporária ao seu desamparo. Navega compulsivo pela internet em busca de informações descartáveis, sexo e amizades virtuais; empanturra-se nas linguagens simplistas dos livros de auto-ajuda e ajoelha-se aos prantos, histérico, diante dos altares e promessas vazias dos milionários templos neo-pentecostais, (grandes magazines mercadores de almas).
Nada, entretanto, aquieta seu espírito. Algo lhe falta e o coloca longe de sentir alguma paz. Mesmo com a vida repleta de controles-remoto e TVs de alta definição, está ávido por luz, não mais as de néon ou xeônio, mas uma que lhe dê alento ao desamparo. Deseja quem dê ouvidos à sua história, não obstante pouco encontre essas pessoas de tão virtuais e narcísicas que se tornaram. Não sonha mais, pois se vê apenas como um número na imensa contabilidade mundial que dita clichês de saúde eterna e beleza a qualquer preço. Cobram-lhe produção e pragmatismo para que possa ter o direito de hastear a bandeira cinzenta da normalidade no jardim de sua casa. “ A transformação do corpo em mercadoria, fragiliza-o e aliena-o das múltiplas grupalidades que potencialmente o possibilitariam forte e audaz diante da solidão” (Bichuetti, 2000).
*Referência ao personagem ‘Lord Vader’do filme Guerra nas Estrelas de Jorge Lucas.
Mas, em meio a este panorama, aquilo que se mostra instituído, cedo ou tarde atinge seu ápice e tal uma onda no mar que ao chegar ao topo, vive o imediato momento anterior à rebentação, breve se transformará em espuma e vapor. Os maiores de todos os fundamentalismos do nosso tempo, o consumismo e a normatização da vida já parecem dar mostras de falência e estarem próximos à rebentação. Debaixo da superfície de registro-controle do capitalismo cruel, parece haver uma luz e um vento que se agita. Sempre houve, aliás, luzes e ventanias em toda a História por mais obscuros que fossem os momentos, pois, dentre tantas características peculiares da espécie, essa talvez seja a mais marcante: nunca se deixar enquadrar totalmente por teorias, regimes ou leis de qualquer natureza.
Mesmo que morra, seja torturada, desapareça, a criatura humana é curiosa, rebelde, inquieta; deixa rastros, pegadas de indignação e acaba por romper as leis anquilosantes de sua época. Se antes tínhamos a caça às bruxas como grande histeria coletiva contaminando a todos com verdades impostas pela Igreja, hoje temos a moderna psiquiatria que faz o mesmo. Assim como o grande olho de Sauron que tudo via (no filme “O senhor dos anéis”) ou o Big Brother do romance “ 1984” (de Orwell), ela também caça seres desviantes que riem ou choram demais, os que são lentos ou rápidos demais; os amantes do ócio, do devaneio e do espírito livre, libertário. Os muros dos manicômios e as inúmeras drogas para tratamentos são exemplos vivos de quantas vozes ainda são caladas em nome da padronização geométrica da vida. No entanto, assim como a inquisição passou, a normatização da existência também deverá passar. Resta-nos saber se o planeta e a vida suportam ainda tanta espoliação e descaso.
Movendo-se, portanto, através de infiltramentos em camadas subterrâneas, caóticas e moleculares, forças instituintes denunciam e se rebelam continuamente contra o ‘caos de superfície’. Este caos não se trata daquele das possibilidades infinitas da criação; o verdadeiro caos. O caos de superfície é o do instituído, engessado; imutável pelas leis das forças detentoras do poder, avessas a mudanças. Mas, Mesmo que o instituído tema o novo, a mudança é inevitável. O Deus da Gênese colocou ordem no caos, criando a luz, separando-a das trevas; o colecionador mata borboletas para que possam figurar em seu mostruário; o homem cristaliza a vivência em um conceito e um nome, temendo a imprevisibilidade do próximo instante (“ Queria capturar o instante que, de tão fugidio, logo deixa de ser” – Clarisse Lispector). Vitória efêmera sobre a mudança incessante. A síntese acaba por se fazer análise, a ordem se subverte e o constituído volta a ser caos (Silva, 1988).
Surgem continuamente movimentos de rebeldia e revolução, ativistas das minorias e das causas planetárias: o Green-peace , o WWF (World Wild fund) , CCHR (The Citizen Commission on Human Rights) , as ONGs, as rádios piratas, os movimentos dos sem terra, dos grupos alternativos que se recusam às condições e verdades instituídas pelo poder e pela lógica do capital segregacionista. Nasce um Ernesto Che Guevara de tempos em tempos em cada canto e rincão do planeta, disposto a entregar seu corpo e sua vida pelo ideal de libertação…
Um exemplo bastante curioso dessa força instituinte, digno de ser trazido dentro da óptica aqui discutida, se refere exatamente à psiquiatria. Esta, ao legitimar todo tipo de enfrentamento como passível de ser enquadrado no CID (Código Internacional das Doenças), DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais), isto é, ter nome de doença e propostas terapêuticas medicamentosas, acabou por oficializar que qualquer forma de desarranjo e desequilíbrio do humano pode pertencer ao domínio do modelo médico: sintomas – exames – causas – tratamentos – prognósticos – curas…
Eis que o tiro sai pela culatra. Além desse modelo não ter trazido qualquer cura, salvo alívios (importantes por um lado, mas deletérios por outro), propiciou uma situação curiosa. Trabalhadores inseridos na maquinaria do sistema passaram a ganhar a possibilidade de adoecerem e gozarem dos mesmos benefícios legais que qualquer outra doença promove. Professores, enfermeiros, médicos, bancários e tantos outros submetidos a condições de trabalho extenuantes, muitas vezes precárias e violentas, sem terem suas vozes ouvidas no âmbito de políticas coletivas, recorrem em massa aos diversos diagnósticos psiquiátricos, subjetivos por natureza. Estes, acabam contemplando condições de conflito, desistência e rebeldia, culminando nos afastamentos prolongados do trabalho (absenteísmo), absolutamente amparados por lei, com pesados ônus aos cofres públicos e prestes a levar os sistemas previdenciários à falência absoluta. Multidões de depressivos não curados, obsessivos inconformados, panicados desesperados reclamam seus direitos, já que a cura prometida não veio.
No universo psi , por exemplo, a esquizoanálise, ainda sem terra, sem teto, vem questionar pressupostos até então sagrados da psicanálise como a questão do desejo, do inconsciente, do Complexo de Édipo… Como o próprio movimento instituinte se define, é um corsário que navega pelos mares do conhecimento, saqueando um pouco daqui e outro pouco dali para que uma grande rede fecunda e rizomática seja montada onde ninguém seja dono de nada e todos sejam donos de tudo. Uma rede sem começo, meio e fim que acredita em devires, em utopias ativas de um ser humano que possa se reinventar permanentemente e sair do ciclo vicioso da busca fantasmática de um ideal de ego (satisfação que na realidade nunca existiu). O movimento instituinte tem como principal virtude a sua capacidade de apropriar-se de todo e qualquer fragmento de código, discurso, organização, estatuto ou prática (Baremblitt,1992).
Um ser cuja totalidade seja maior que a soma das partes e que tenha no desejo inconsciente uma força inesgotável de potência criativa; não um poço sem fim destinado à busca de satisfações ilusórias de um passado ontológico e apenas mítico.
A psicanálise, por seus pressupostos mais modernos, ainda que atinja uma maturidade ao pretender-se ética e estética saindo do registro do cientificismo e da certeza, rumando ao indeterminismo e incerteza (Birmam,1996), manteve-se presa à ortodoxia burguesa clínica, mostrando-se absolutamente falida, hipócrita e egoísta, pois lhe falta uma dimensão fundamental, a política! Levar ao coletivo, mais humildemente, suas caixas de ferramentas, trabalhar pelo bem comum dos grupos e definitivamente reconhecer que é apenas mais uma no imenso universo do conhecimento.
O movimento instituinte tem como proposta vital exatamente o coletivo, pois entende que só haverá uma ‘cura’ no coletivo e na partilha igualitária. Traz uma luz que emana do desejo, habitando no reconhecimento e respeito às diferenças, na solidariedade, no altruísmo, na doação, nas relações afetivas verdadeiras e produtoras de vida, de reinvenção do Outro e de nós mesmos, não mais ego-centradas, mas ego- centrífugas (“ Todo o pensamento é um devir, um duplo devir, em vez de ser o atributo de um Sujeito e a representação de um Todo” – Deleuse e Guattarri,1980).
Nesse sentido, a esquizoanálise estaria para a psicanálise assim como a música clássica de Beethoven está para a música experimental de H.J. Koellreutter. Esta última, partindo da teoria originária, desconstruiu toda a semiótica musical e reinventou a concepção de musicalidade, naquilo que ele mesmo chamou de uma “Estética Relativista do Impreciso e do Paradoxal” (Porto, 1998).
Eis, portanto, as novas luzes: o cuidado com a Terra e com o coletivo. A luz do olhar materno que ainda lambuza a cria e a embala com doces melodias nas longas e intermináveis noites de insônia, mas com total entrega àquele pequenino ser indefeso que ganhou o sopro da vida.
Se presenciamos épocas narcísicas, de estéticas empobrecidas, vazias e descartáveis, vivemos também a possibilidade de grandes mudanças onde a solidariedade e a poesia devem ser retomadas. Sem elas não haverá riqueza ou tecnologia capaz de dar continuidade à existência. Sem essa luz todos nos perderemos na escuridão de um mundo cada vez mais violento, injusto e inviável à continuidade.
O movimento instituinte e a esquizoanálise não se propõe a serem novas psicologias, mas usinas geradoras de caos, energia, esperança, justiça e devires.
Referências Bibliográficas
Baremblitt, G. “Compêndio de análise institucional e outras correntes-teoria e prática” . Ed. Félix Guattarri. BH, 1992.
Bichuetti, J. “Crisevida”. Biblioteca do Instituto Félix Guattarri, Coleção esquizoanálise e esquizodrama. Uberaba-MG, 2000.
Birmam, J. “Por uma Estilística da Existência” . Editora 34, São Paulo,1996.
Debord, G. “ La sociétéu du spectacle” . Paris: Gallimard, 1992. (Col. Folio)_____. A sociedade do espetáculo . Prefácio da 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo . Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Deluze, G. ; Guatarri, F. “ Mil Platôs- Capitalismo e Esquizofrenia” . Ed.34
(edição brasileira, 1997), São Paulo, 1997.
Kepel, G. “ A Revanche de Deus” . São Paulo. Ed. Siciliano, 1991.
Lima, R.C. “Somos todos Desatentos? O TDA/H e a Construção de Bioidentidades”. Rio de janeiro: Ed. Relume Dumará, 2005.
Porto, N.T . “O Processo Criativo de H.J. Koellreutter em Ácronon” . Tese de dissertação de mestrado em comunicação e semiótica. PUC-SP,1998.
Silva, M.E.L. “Pensando o Pensar com W.R. Bion”. MG editores associados. São Paulo, 1988.
*Lincoln J.C. Almeida é Psiquiatra-Psicoterapeuta-artista plástico e escritor