POR UMA CLÍNICA DA NINGUENDADE: PROGRAMA DE LIBERTAÇÃO DA ESQUIZOANÁLISE

Autor: Nelson Job

O poema

não deve ser raciocinado

deve ser

extasiado.

O velho Spinoza, que não escreveu uma linha sobre o neurotransmissor, é que me curou.

Adília Lopes

 

A esquizoanálise no Brasil sofre das típicas colonizações recorrentes desde seu “descobrimento”. Este artigo é um uivo para que a esquizoanálise cultive sua autonomia criativa em terras tupiniquins. Para isso, desenvolvemos um “programa” de libertação em seis itens que consideramos relevantes nesse intento:

  1. Libertação das estruturas

O fantasma do estruturalismo tenta reencarnar continuamente no campo deleuziano, mesmo com todos os esforços de Deleuze e Guattari (1972) ao longo de suas obras, que denunciam amplamente as amarras estruturais de Saussure, Lévi-Strauss, Lacan e afins. É preciso lembrar que a esquizoanálise constitui-se em suas relações pelo campo relacional, que é explícito em Bergson, mas já possui um precursor em Spinoza. As separações de sujeito e objeto, significante e significado, Natureza e cultura etc., são estranhas e indesejadas no campo esquizonalítico. Sendo assim, essas intrusões devem ser evitadas enquanto incitadoras de baixa potência.

Uma recente reencarnação do estruturalismo e, infelizmente, celebrada no campo esquizonalítico é a do “perspectivismo ameríndio”. O perspectivismo ameríndio nasceu da etnografia de Tânia Stoze Lima (2005) e é desenvolvido pelo seu orientador, Eduardo Viveiros de Castro. Trata-se de aplicações do estruturalismo com elementos estrategicamente “desidratados” do pensamento de Deleuze e Guattari, com ênfase em seus aspectos monadológicos do intercessor Leibniz.

O perspectivismo ameríndio tem suas bases no pensamento de Bruno Latour, que também é celebrado no campo esquizoanalítico, ao nosso ver, também gerando despotencialização. A proposta latouriana de teoria ator-rede é dualista se dizendo ao contrário, o que é muito bem demonstrado pelo antropólogo – esse, de fato, promovendo ressonâncias consistentes com a filosofia da diferença – Tim Ingold (2015). A teoria ator-rede é fascinada pelos nós da rede, colocando-a enquanto “rizomática”. Ora, como sabemos, os tubérculos do rizoma não são e não devem ser a ênfase no rizoma, e sim o que ocorre ao longo deles. A inversão latouriana de natureza e cultura presente no perspectivo ameríndio tampouco interessa: colocar uma cultura (perceber a perspectiva) e várias naturezas (o multinaturalismo criado em que cada “vista de um ponto”, que gera, por sua vez, um mundo) só inverte o problema, mas não o resolve. Habitar uma imanência não-dualista envolve dissolver o problema de Natureza e cultura e não o inverter.

Além disso, o perspectivismo ameríndio está aquém do perspectivismo monadológico de Leibniz. Se, no filósofo alemão, a mônada está em devir, a do perspectivismo ameríndio se estiver em devir, este está muito despotencializado pelo estruturalismo. Uma vez que um jaguar sempre verá um jaguar enquanto humano, então a perspectiva não se altera. Onde está o devir? Seria se fosse como numa lagarta, em que “o mundo que se expressa” por ela apreende o casulo enquanto lar e na borboleta, enquanto prisão. No devir-borboleta da lagarta, há devir em sua perspectiva (Job, 2013).

  • Libertação do secularismo

O campo esquizonalítico também sofre do secularismo iluminista e racionalista. Sabemos das influências que Deleuze e Guattari (1997) recebem de Castaneda e o nagualismo. A ressonância entre atual e virtual e tonal e nagual são gritantes e profícuas. Os franceses entoam o ritornelo no Mil Platôs, “nós, os bruxos”, além de assumirem a bruxaria enquanto pragmática das multiplicidades anômalas, para citar algumas referências diretas à mística. Joshua Ramey (2012) deixa claro as relações da obra de Deleuze e Guattari com a mística na filosofia, que se inscreve, retroativamente, de Bergson, passando por Spinoza, de Cusa, Bruno, Plotino e chegando indiretamente nos bruxos herméticos[2].

No Brasil é muito mais fácil para se acessar a uma mística pulsante, seja nos terreiros, seja em diversas práticas místicas desinstitucionalizadas: é preciso apreender o cavalo, o médium, o meditador e o êxtase enquanto criadores de Corpo sem Órgãos, assim como o “ectoplasma” enquanto intensivo (Job, 2020a).

  • Libertação da ex-querda

A relação política da esquizoanálise com movimentos de esquerda também é, na verdade, reacionária. O conceito de “lugar de fala” pressupõe e reifica uma separação de sujeito e objeto. As questões sobre racismo são importantíssimas, no entanto, reificam, por sua vez, o conceito de biológico de raça que não tem mais sequer validade científica. É preciso, de um lado, falar em etnias e, mais ainda, retomar sob um viés não-estadista o conceito de Darcy Ribeiro (2013) de ninguendade. A ninguendade mostra para além do Bem e do Mal, as singularidades de miscigenação no Brasil como emergência de um povo porvir. Se, de um lado, é legítima a defesa das minorias étnicas, por outro, a grande celebração é a da nossa miscigenação.

Se o pensamento de esquerda também reifica um dualismo político, sabemos que a corrupção é ambidestra e eivada de representação partidária, mas que pressupõe uma representação mais ampla, ontológica. A esquizoanálise precisa legitimar a tão propagada micropolítica de Deleuze e Guattari via a revolta (Jesi, 2018) enquanto menos um projeto de futuro e mais uma emergência de afirmação de novas liberdades aqui e agora. A confluência das Zonas é bem-vinda: de um lado, as Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) de Hakim Bey (2001), de outro as Zonas de Opacidade Ofensiva (ZOO) da revista Tiqqun (2020), cujas ressonâncias permitem a emergência de campos libertários provisórios, o mais invisível ao poder e estratégico em suas fronteiras.

  • Atualizar a noção de guerra

As sociedades de controle apontadas por Deleuze também sofreram uma desidratação por Toni Negri, apontadas pela Tiqqun e seu desdobramento, o Comitê Invisível (2013) etc. Mas hoje, é preciso estar atento aos novos tentáculos do poder. Para isso, devemos estar cientes da guerra irrestrita. O primeiro passo é estar ciente das guerras híbridas (Korybiko, 2018), em que o poder manipula o imaginário político de um país por meio das redes sociais, mídia e “dossiêcracia”, que controlam os políticos de direita, centro e esquerda. Por sua vez, a subserviência da mídia opera o domínio de espectro total (Leiner, 2020), que controla tanto os discursos de direita quanto os de esquerda. Mesmo a mídia “independente” mais popular é dominada. O discernimento da informação e a curadoria de fontes se tornam extremamente relevantes nos dias de hoje[3].

  • Ressoar um devir-Canudos

A comunidade de Canudos foi uma das mais brilhantes criações de TAZ da história, em que foi criada uma comunidade livre, com uma mística anarco-comunista (Conselheiro, 2017), uma experiência educacional inovadora (Vasconcelos, 2017) e uma resistência tão potente que foi preciso a união de todo o exército brasileiro para derrotá-la. As ressonâncias com um devir-Canudos devem passar por todos os nossos itens anteriores para criar um levante mais indiscernível para o poder e mais potente para os dias de hoje.

  • Desobedecer

Por último, é preciso estar ciente da relevância da desobediência, sobretudo em seu sentido imanente que denuncia o pensamento da transcendência como sempre invocando uma obediência, seja a transcendência de Deus, via pontífices de toda espécie, seja a transcendência política, via partidos e seus “representantes”, do professor da escola disciplinar, do patrão, do pai de família, do médico etc. A desobediência não é do rebelde sem causa, mas da desobediência enquanto responsabilização cósmica: habitar uma imanência é cuidar do si, cuidando do cosmos por extensão. A obediência, então, envolve uma desresponsabilização alienante.

Uma transcendência a ser denunciada é a do próprio Brasil enquanto “nação”, estado jurídico. Uma anarquia ontológica nos faz emergir comunidades, devires-Canudos. Nesse sentido, uma esquizoanálise “brasileira” deve-se desdobrar em uma clínica da ninguendade.

E, finalmente, este texto também deve ser paradoxalmente desobedecido. Estas linhas são convites, provocações, cujos desdobramentos apenas fazem sentido se ressoar com as espontaneidades de devires que passam aqui e agora.

Bibliografia

BEY, H. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad Livros, 2001.

COMITÊ INVISÍVEL. A insurreição que vem. Brasil: Edições Baratas, 2013.

CONSELHEIRO, A. Apontamentos dos preceitos da divina lei de nosso senhor Jesus Cristo, para a salvação dos homens. São Paulo: É Realizações, 2017.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Editora Assírio Alvim, 1972.

____________________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Editora 34, 1997.

INGOLD, T. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.

JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. São Paulo: n-1, 2018.

JOB, N. Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica. Rio de Janeiro: Cassará, 2013.

______. Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica. Rio de Janeiro: KDP Amazon, 2020a.

______. Bruxaria deleuziana: o exercício em vórtex como criação de corpo sem órgãos. Alegrar, n. 25, p 182-188, jul 2020b. ISSN 1808-5148. Disponível em < https://alegrar.com.br/alegrar25-16/ >. Acesso em 16 fev. 2021.

KORYBKO, A. Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2018.

LEIRNER, P. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2020.

LIMA, S. L. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

RAMEY, J. The Hermetic Deleuze: Philosophy and Spiritual Ordeal. Durham and London: Duke University Press, 2012.

RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2013.

TIQQUN. Tudo deu errado, viva o comunismo. São Paulo: n.1 Edições, 2020.

VASCONCELOS, P. L. Arqueologia de um monumento – os apontamentos de Antonio Conselheiro. São Paulo: É Realizações, 2017.


[1] Nelson Job é criador do campo conceitual e experimental transaberes. É psicólogo e doutor pelo HCTE/UFRJ. Autor dos livros “Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica” e “Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica”.

[2] Para desdobramentos do que seria uma Bruxaria Deleuziana, ver nosso artigo homônimo (JOB, 2020b).

[3] Ver nosso artigo “Pororoca: a criação ‘brasileira’ enquanto levante”, no prelo.

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