Autor: Gregorio Baremblitt
1.0. Estas linhas tentam precisar dois “esquizoemas” (unidades semióticas do discurso da ação esquizoanalítica, Baremblitt, 2004) da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que não estão suficientemente definidos, e cuja caracterização mais precisa parece-nos importante para os diversos empregos da Esquizoanálise. Algumas das principais dificuldades para entender tais postulações (obstáculos esses que os autores reconhecem e marcaram) são:
- a) A tradicional e estreita associação entre as imagens históricas do ser, do humano e do subjetivo, que vão, desde uma atribuição que se costuma dar-lhes de “naturalidade”, até uma de “transcendência”. Tais figuras são dotadas, ou de uma universalidade, essencialidade per si e invariância tout court, ou de uma universalidade indutiva que reúne diferenças limitadas, baseadas na relação entre constantes ou invariantes, variáveis dependentes e intervenientes;
- b) As construções modernas de diversas especificidades que, exatamente para combater o conhecido antropomorfismo, estabelecem a inerência entre o subjetivo e a estrutura dinâmica das formas de semiologização significante;
- c) A concepção hierarquizada, evolutiva, compartimentada por especificidades dos “níveis” da realidade: físico, químico, biológico, sócio/político/econômico, semiótico, científico, tecnológico…e subjetivo;
- d) A centralização, unificação, totalização, homogeneização e atribulação exclusiva e excludente de certas funções à forma-sujeito, capaz de transformações limitadas e algebricamente formalizáveis, mas, em última instância, idênticas a si mesmas;
- e) A divisão e descentralização da citada forma em campos determinantes e determinados específicos, (por exemplo: consciente e inconsciente, estruturante e estruturado);
- f) A definição de sujeito “individual” como “uno” e a de coletivo como múltiplo (muitos desse uno);
- g) A separação natureza/cultura, a identificação de cultura com os sistemas simbólicos, e a atribuição ao humano de ser a cúspide hegemônica dessa divisão.
2.0. Importante assinalar que, em Esquizoanálise, quando de fala de expressão, a subjetividade e subjetivação podem funcionar como filosofemas, conceitos científicos, variações artísticas, noções, opiniões, afecções. Em uma terminologia científica muito difundida, podem denominar-se construtos, perceptos, fatos etc. Esse funcionamento é, ao mesmo tempo, parte das semióticas que se acoplam, digamos, referencialmente, a realidades e realteridades (as realteridades entendidas como campos virtuais, vontades de potência, superfícies da produção desejante etc. Baremblitt, 2004) ou as compõem intrinsecamente, sendo-lhes sempre imanentes. Subjetividade e subjetivação, como semiotizações ou como “fatos” são, imanentemente, vertentes dessas realidades.
3.0. Postulamos que a realidade e a realteridade funcionam como processos; em esquizoanálise, porém, é preciso falar das citadas vertentes como processos de subjetividade e subjetivação.
Como todos os processos, os de subjetividade e subjetivação são processos de produção (com prevalência da produção de produção, da reprodução e da antiprodução). Denominamos processos de produção de subjetividade àqueles em que prevalece a produção de reprodução e de antiprodução. Coerentemente, denominamos processos de produção de subjetivação àqueles em que prevalece a produção de produção.
4.0. Como os processos da realidade são andamentos discretos, de temporalidade cronológica ou sincrônico/diacrônica e de espacialidade estriada e extensiva, os índices dos processos de subjetividade e subjetivação comportam uma duração e uma situação que os tornam (para usar uma palavra difundida) ostensivos, para os componentes “observadores” que estudam e, às vezes, integram tais processos.
5.0.Como os processos da realteridade são andamentos em variação contínua de enementos (de n – infinito.G. Baremblitt, 2004), de durações temporais aiônicas (tempos intempestivos incomensuráveis) e em espaços lisos (não internamente divisíveis e de limites externos difusos), as condições de subjetividade e subjetivação são indiscerníveis nos citados campos. Isso não implica que não sejam insistentes (o que, dito com fins didáticos, seria o correlato de existentes na realidade).
A proposta esquizoanalítica de que a produção é imanentemente produção desejante tem a ver com esta definição, apenas com o esclarecimento de que, neste contexto, desejante não é um componente impulsor desejante faltoso e restitutivo subjetivo, e, sim, implica em “desejosa de produção”, ou tendente a incessantes sínteses conectivas inclusas mutacionais, ou, como se diz em Esquizoanálise (em nosso entender não muito felizmente): autopoiéticas e irreversíveis. Em lugar de tais termos, de demasiadas reminiscências biológicas e físicas, proporíamos os de autoprodutivos e auto-promultiplicitáveis (G. Baremblitt)
6.0.Um dos platôs paradigmáticos da Esquizoanálise divide a realidade/realteridade em campos de: caos, caosmos e cosmos. Na sinteticidade do presente texto, apenas diremos que tais composições são, por sua vez, imanentes e discerníveis, e se processam tanto determinística como aleatoriamente em proporções variadas. Isso faz com que funcionem em e entre elas, no mínimo, através de quatro “procedimentos” essenciais:
a) a transversalidade; b) a heterogênese; c) o maquinismo; d) a esquizodramatização.
- a)Devido à transversalidade, realidades e processos do caos e caosmos transpõem, decompõem e compõem umbrais de formas e substâncias de conteúdo e expressão identitárias e identificáveis, produzidas por equipamentos de saber e poder funcionais à reprodução da formação social em pauta para estabelecer conexões “à distância”, cujos trajetos não são traçáveis e cujas concretudes são distópicas e bizarras.
- b) Devido à heterogênese, a transversalidade produz, sintetizando enementos de dupla “natureza” diferente (como veremos), por sua vez, auto-gerados, cuja produção se efetua e resulta em expoentes inclassificáveis, anômalos entre genéricos, entre específicos, entre individuados. Dizemos entre e não inter, porque esse lapso entre é o que mais e melhor representa o fora absoluto no interior do dentro de qualquer totalização estabelecida, identitária e identificável.
- c) Três acepções de maquinismo parecem-nos pertinentes e o são, de fato:
I) uma restrita, que implica no funcionamento da transversalidade e da heterogeneidade no campo especializado da realidade tecnocientífica (as famílias ou filus maquínicos, suas alianças gerativas e geracionais (genealógicas) com as outras realidades, em especial, com o sócius) etc;
II) outra ampla, que designa o funcionamento da transversalidade e da heterogênese entre todos os corpos (entendendo corpo como qualquer entidade concomitantemente intensiva, extensiva e temporal, incluídos os artifícios tecno-científicos);
III) uma terceira, que tange à constituição caosmótica-virtual de máquinas abstratas realteritárias, ainda que virtuais e atualizáveis, universais, como o conjunto aberto de suas respectivas singularidades, abstratas e transcendentais (não transcendentes), materiais, sem haver chegado a coagular-se como materiais, nem corpóreas, nem semióticas, concretizáveis em dispositivos compostos por agenciamentos maquínicos de corpos (máquinas concretas), mais ou menos permeáveis (crivadas…G.Baremblitt) às segmentariedades flexíveis e outros enementos.
- d) Esquizodramatização (G. Baremblitt) é o nome que damos às concreções das máquinas concretas por meio dos atos-ações protagonizados pela transversalidade, a heterogênese e o maquinismo, atuando, conjunta e imanentemente, para produzir a transmutação de uma ou várias entidades ou circunscrições identitárias e identificáveis…em outras, que apenas evocam as primeiras ou que as metamorfoseiam e inovam por completo. Dito de outra maneira: a conjunção do paradigma: caos, caosmos, cosmo, e seus atos-ações processuais de transversalidade, heterogênese, maquinismo concretizam-se dramaticamente como novos cenários, personagens, coreografias, cenografias, scripts de literatura menor etc.
7.0. Cada formação histórica (dito no sentido mais amplo, inclusivo, real, possível e impossível, realteritário virtual) está composta por máquinas abstratas que se efetuam através de máquinas concretas ou dispositivos/agenciamentos (coletivos de enunciação, e maquínicos de corpos, em pressuposição recíproca), todos conectados entre si segundo diferentes regimes e sínteses. Essa diversidade sempre é simultaneamente resistencial e mutante. Resistencial tem dois sentidos: 1º) o da luta do identitário por permanecer, ainda que através de suas variações reguladas; 2º) o do combate do mutante por ouvir as constrições designadas pelo primeiro sentido recém exposto.
Transpondo conceitos nietszchianos, denominamos o resistencial reprodutivo e anti-produtivo como resistencial negativo reativo (não confundir com reacionário, ainda que essa modalidade esteja sempre incluída); vamos denominar ao resistencial reprodutivo como afirmativo ativo (Não confundir com “positivo”, nem no sentido filosófico positivista, nem em suas conseqüências históricas).
O resistencial reativo passivo sempre apresenta gretas, falhas ou como se queira chamá-las, por onde o resistencial afirmativo foge (não confundir com escapar ou com escapismo, ainda que valores em jogo em práticas chamadas escapistas devem ser cada vez sopesados).
A rigor, é recomendável ter sempre em conta que, assim como todo objeto tem duas metades- uma virtual, intensiva, singular e outra existencial, identitária ordinal-, cada subjetivante tem uma metade dos tipos mencionados. Essa bivalência faz com que seu saber epistêmico, ou sua potência experiencial se ativem, preferencialmente, segundo as sínteses e as interfases em que se engrenem. Cada formulação histórica gera e é gerada por máquinas abstratas que se atualizam, efetuam e concretizam-se em inumeráveis dispositivos (máquinas concretas), uma de cujas dimensões é sempre subjetivante.
Os processos subjetivantes podem ser resistenciais, reprodutivos, antiprodutivos-negativos-reativos ou, pelo contrário, resistenciais produtivos-afirmativos-ativos. No primeiro caso, chamá-los-emos subjetividades; no segundo, subjetivações e, em todos os casos, as mesmas compõem multiplicidades que se conectam em todas as direções (cardinais e ordinais) e se efetuam em identidades seriais ou em singularidades incomensuráveis e inequiparáveis.
O mais importante a ser captado na presente síntese é o que chamamos vertente subjetivante de cada dispositivo (composta de funcionamentos intelectivos, volitivos, sensitivos, afetivos, intuitivos, imaginativos, expressivos etc.), produzidos ad hoc como constelações únicas (não confundir com unitárias), diferenciais, multiplicitárias, em suma, singulares.
As mesmas, em sua implantação, podem ou não constituir sujeitos (também diferenciais, multiplicitários e singulares). Tais sujeitos-componentes devem, segundo o dispositivo e processos aos quais pertençam, ser coerentes em forma e substância de conteúdo e expressão com as produções de subjetividade ou subjetivação que os integram.
Quando os sujeitos se constituem e funcionam como peças de subjetividades, é fato freqüente que se construam como o sujeito padrão edipiano, inteiramente normativizado, ou não, sujeito este, cujo apogeu e pseudo-universalidade é essencial ao capitalismo planetário integrado.
Quando funcionam como peças de subjetivações, estão constituídos e funcionam por formas, substâncias e atos-ações com forma e substância de conteúdo e expressão absolutamente “originais”, ou seja, são multiplicitários e se destacam como singulares.
Para ilustrar este ponto, digamos que, segundo os casos, até o dispositivo mesmo, completo, com seus processos de subjetivação e subjetividade pode ser seu próprio sujeito.
Nas formações históricas imperiais despóticas, a instância suprema se representa como a unidade de Deus, o corpo do Déspota e o dispositivo Estado. Não obstante, esta configuração não implica, de nenhuma maneira, que tal formação não esteja constituída por uma multiplicidade de dispositivos, de modos de subjetivação, ainda que o mencionado sujeito supremo não seja uma peça de processos de produção de subjetividade e subjetivação.
Vale destacar, que os processos são intervenientes em diversas proporções, como se mostra magistralmente no livro de Antonin Artaud “Heliogábalo, o Anarquista Coroado”. A potência mutante histórica desta co-presença é o que varia segundo as formações históricas em pauta.
9.As investigações das psicologias e psicopatologias da consciência, da conduta da pessoa, (especialmente as que se atribuem alguma dimensão grupal, organizacional e social) etc., assim como as que poderíamos denominar antropológicas da “mentalidade primitiva” e outras ciências, já deram numerosas provas imperfeitas da construção histórica heterogênea do sujeito. Os estudos sobre transitivismo, o animismo, a magia etc. serviram bem para a presente concepção.
A Psicanálise contribuiu com a invenção do inconsciente, do sujeito dividido e descentrado, assim como com a conceituação dessa divisão e descentramento modelada, segundo a distinção entre o sujeito do enunciado e o da enunciação e a constituição relacional deslizante do sujeito nas substituições metonímicas e metafóricas da cadeia significante.
Também é importante a idéia do objeto pequeno a, que salta da cadeia significante e funciona como “peça” do desejo do sujeito. Não menos sugestivos são os conceitos de mundo interno, o self fragmentado e povoado por sujeitos e objetos parciais, assim como pelas operações de identificação introjetiva, projetiva, suas posições esquizoparanóide e depressiva etc. Todas essas noções são precursoras de esquizoemas.
Com todas as limitações, as postulações de um sujeito grupal que constitui e emprega funções supostamente pertencentes aos sujeitos discretos que formam partes separadas do conjunto, a idéia de um aparato psíquico grupal, de “psicologia de massas” ou de funções, pelo menos em parte, subjetivas, como a da “consciência de classe” e a teoria da ideologia, ou o “caráter social médio”, ou a história das mentalidades, são todos antecedentes significativos. Assim como filosofia e todas as ciências, especialmente a macro e micro física são também, para a esquizoanálise, fontes tão ou mais importantes que as disciplinas da subjetividade.
Mas não é apenas a partir de uma transdisciplinaridade levada ao extremo que a esquizoanálise trabalha. É da tecnociência, da literatura, da pintura, do teatro, do cinema, da música, da arquitetura, da moda e, especialmente, do mito e do delírio de onde a esquizoanálise “extrai” sua teoria da produção de subjetividade e subjetivação. O essencial é entender que não se trata de “aplicações” sistemáticas de disciplinaridades, especificidades ou de saberes fazeres convalidados ou sacralizados, e sim, de sua reinvenção e remontagem fragmentária e bricoleur que se compõem as realidades e realteridades esquizoanalíticas.
Guattari insiste em que, tanto a subjetividade como a subjetivação, em seus componentes de realidade e de realteridade, devem ser abordados desde seu seio e durante a invenção e o processamento dos dispositivos nos quais se produzem e dos quais formam parte. A maquinaria acoplada para interligar, mudar ou intensificar essas subjetividades e subjetivações também produz, durante o processo, as subjetividades que entorpecem e as subjetivações que a promovem. A captação das realidades e processos que acolhem o processo de análise e intervenção deverão ser realizadas em uma modalidade prática vivencial, muito mais derivada de um paradigma ético, estético, político, que dos filosóficos e científicos convencionais.
A subjetividade e subjetivação estão longe de serem processos prioritariamente universais, no sentido do universal dominante, constituído por abstração de identidades, semelhanças, homologias e também oposições, constantes e naturais, componentes e efeitos semiológico-lingüísticos (também dissimuladamente universais e invariantes), ou de narrações de vivências íntimas ou exames de comportamentos observáveis, expostos em artefatos de investigação que os predeterminam e limitam. A subjetividade e a subjetivação são produções que interessam por sua condição insólita e singular, produzida e estudada com o emprego dos recursos mais artificiais e dispositivos variantes e concomitantes concebíveis.
Se aceitarmos que a produção (muito figurativamente chamada humana) é sinônima do artificial na história, é a subjetividade e a subjetivação como invenções artificiais que as fazem interessantes. Artificialidade, porém, que não se refere apenas à evidenciada pela historicidade nunca originária, nem genética, nem evolutiva, nem unitária, nem tecnológica dos modos subjetivantes. Tampouco, a artificialidade deve atribuir-se exclusivamente ao forte componente tecnocientífico, por exemplo, dos sistemas informáticos, telemáticos, automatizantes, ou as crescentes hibridações transgênicas ou transistêmicas. Destacaríamos que artificial pode ser entendido prevalentemente como pós-humano ou neo-humano. Se o artificial é paradigma, é porque é o mais clamorosa e exclusivamente produzido, ou seja, não naturalizado, nem tornado metafísico, nem transcendente.
8. Neste momento da exposição, é interessante transcrever literalmente uma formulação definitória de subjetividade e subjetivação tomada de Félix Guattari. A eleição da mesma deve-se, principalmente, ao fato, apenas bibliográfico, de ser um parágrafo em que se ensaia uma definição mui relativamente próxima ao que se entende como tal nos discursos acadêmicos. Isto sem esquecer (como veremos mais adiante) que Guattari oferece, no transcurso de toda a sua obra, abundantes recursos para referir-se à subjetividade e à subjetivação de outras maneiras, decididamente próximas aos propósitos de nosso escrito.
Em “Caosmose, um novo paradigma estético” ( pág.19. Ed. 34, 1992. RJ.), Guattari escreve que a subjetividade é
“o conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais e ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade, ela mesma subjetiva”.
Tentando fazer uma correlação entre esta definição e o tratamento aqui dado a este tema, comecemos por apontar que, na primeira definição citada….”o conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir” merece algumas observações.
Neste parágrafo, o termo emergir expressa uma polissemia compreensível. Impressiona-nos que “emergir” (apesar das reminiscências heiddegerianas) implica tanto em “fazer-se perceptível ou revelar-se”, como “chegar a certo momento de pregnância em seus processos produtivos”. Já “o conjunto de condições que tornam possível que instâncias individuais ou coletivas estejam em posição de emergir” é passível de algumas interrogações, ou mesmo de críticas, pelo menos instigantes. Se a subjetivação e a subjetividade são produzidas, os processos de produção, suas atualizações, efeitos, produtos etc. não são “condições de possibilidade de emergência”; segundo expusemos, são montagens imanentes, transversais, heterogênicas e dramáticas de produção de produção, de reprodução e de antiprodução aleatórios e/ou determinísticos de subjetividade e subjetivações. As mesmas se valem de instâncias individuais ou coletivas “terminais” através das quais podem “emergir” digamos ontológica e gnoseologicamente, mas sua importância definitória afirmativa-ativa ou negativa-reativa não radica nas peculiaridades de sua “emergência”, mas no andamento de seu processo mesmo, na medida em que subjetividade e subjetivação são sempre vertentes indispensáveis e presentes em todo dispositivo. Guattari deixa claro, em outras passagens do mesmo escrito, que a emergência por meio de instâncias individuais ou coletivas interessa menos do que o fato de que as subjetividades e, em especial, as subjetivações, são linhas ou áreas de multiplicidades rizomáticas, dobras e redobras de uma substância processual imanente, descontínua. A definição citada, porém, parece-nos enfatizar demasiadamente (como já adiantamos) as “condições de possibilidade de emergência”, tanto quanto a natureza empírica ou cientificamente caracterizada de seus “suportes” de “emergência possíveis” e de sua posição para fazê-lo. A emergência, ainda que “…como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade, ela mesma subjetiva…” já está mais coerente com a teoria esquizoanalítica. Permitimo-nos supor, porém, que esse território pode, mas não necessita, ser auto-referencial. Esse termo pode significar, tanto uma exigência de capacidade de auto-caracterização, que recorda a imposta inveteradamente para o Sujeito e se baseia em um desdobramento, uma de cujas fórmulas mais difundidas é a reflexividade do “ter consciência de si”. Guattari o diz, com todas as letras, quando afirma que o sujeito (como entidade geral) surge quando, por exemplo, se impõe “pensar que pensa”. Mas a auto-referência pode expressar outro sentido esquizosemiótico. Trata-se da auto-referência como componente de um diagrama de logística, estratégia, táticas e técnicas de um dispositivo e seus componentes subjetivantes. Algo parecido ocorre com “…em adjacência ou em relação de delimitação…”, semantemas espaciais concernentes a níveis ou aspectos identitários estriados de registro, talvez próprios dos produtos da produção de subjetividades, mas não necessariamente dos de subjetivação.
Em esquizoanálise, o inconsciente, entendido como a produção desejante, em sua vertente subjetivante, tanto a auto-referência, como a adjacência e a delimitação por relação às alteridades subjetivas, não é significativo. Se, na superfície da produção não há sujeito-outro, e se o Grande Outro lacaniano pertence à Ordem Simbólica, que se efetiva em registros subjetivos de alteridade por sínteses disjuntivas excludentes: o este outro, a única alteridade que interessa no caosmos é a do fora absoluto “exterior” ou “interior”.
Por outro lado, a alteridades subjetivações produzidas consiste em sua singularidade porque cada uma delas implica alteridade com respeito ao conjunto infinito e difuso de “todas” as outras. Como devemos recordar e como insistiremos mais adiante, as subjetivações são devires acontecimentos, e, portanto, podem ser alteridades minerais, vegetais, animais etc. Parece-nos que certas dificuldades da definição de subjetividade e subjetivação passam por reminiscências do antropomorfismo e linguisticismo, e o emprego de idéias, conceitos ou noções que, todavia, são esquizoemas.
10) No livro As Três Ecologias (Guattari. página 17. Ed.Papirus.Campinas,1990), Guattari escreve: “Em vez de sujeito, talvez seria melhor falar de componentes de subjetivação, trabalhando cada um, mais ou menos por conta própria. Isso conduziria necessariamente a reexaminar a relação entre o indivíduo e a subjetividade e, entes que nada, a separar nitidamente estes conceitos. Esses vetores de subjetivação não passam necessariamente pelo indivíduo, o qual, em realidade, se encontra em posição de “terminal” com respeito aos processos que implicam grupos humanos, conjuntos socio-econômicos, máquinas informacionais etc.
Assim, a interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns em relação aos outros, e, se fosse o caso, francamente discordantes.”
Esta segunda definição citada, já nos dá uma série de apoios para aclarar nossas dúvidas. Guattari chega a essa formulação, depois de concluir que “O sujeito não é evidente, não basta pensar para ser, como proclamava Descartes, já inumeráveis outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, uma vez que o sujeito advém no momento em que o pensamento se obstina em apreender-se a si mesmo e se põe a girar como uma tromba enlouquecida, sem enganchar em nada os Territórios reais da existência, os quais, por sua vez, derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes”.
Temos insistido neste escrito em que os processos de produção de subjetividade e de subjetivação, ainda que suas efetuações sejam distintas, não são em absoluto conscientes. Quando Guattari fala dos “componentes de subjetividades”, é bastante provável que aluda a tais processos, mas no contexto, parece referir-se mais a componentes realitários, chamem-se sujeitos ou territórios existenciais. Parece-nos, porém, que o problema não consiste em que o sujeito reflexivo não enganche nada dos territórios reais da existência, nem tampouco em que o sujeito não seja evidente. Pelo contrário, cremos que o que se estabeleceu chamar de sujeito (seja no texto ou discurso que for) é evidente. A questão finca em que também a evidência do sujeito, junto com a dos territórios existenciais em que se evidencia são produzidos. O chamado sujeito é um terminal de um processo de produção de produção, de reprodução e de antiprodução complexamente inseparáveis dos que geram, distinguem e evidenciam ao dos indivíduos biológicos, pessoas psicológicas ou jurídicas e agentes de posições e funções instituídas, organizadas e estabelecidas em geral. Pensamos que separar a produção de subjetividade (que culmina com a do sujeito e com todas as outras unidades citadas) não ajuda muito a distinguir tudo isso da produção de subjetivação, que é inteiramente inconsciente e não se define por auto-referência, nem por alteridade, nem por seus objetos. Isto seja dito tendo-se em conta que inconsciente não nos parece uma idéia feliz para esquizossemiotizar os processos da realteridade. Para nosso gosto, recorda demasiado a um outro da consciência, tanto nas psicologias, como nas psicanálises, no idealismo hegeliano, ou na filosofia da natureza.
Para explicar nossas observações sobre o segundo parágrafo guattariano citado, permita-nos expor que atribuímos ao termo heterogênese pelo menos dois significados. O primeiro implica que o diferente produz o diferente, mas como diferenças realitárias (específicas ou de regime) e diferenças realteritárias (de natureza).
Parece-nos que Guattari se refere a diversos vetores de subjetivação que não passam pelo indivíduo-sujeito, que, em realidade, se encontra em posição “terminal” com respeito a processos que implicam grupos humanos etc; está empregando heterogênese no sentido de diferenças de regime. Cremos que ter em conta essa transversalidade e essa heterogênese (o que implica “separar” indivíduo e sujeito etc.) já é muito importante para desmistificar a famosa “autonomia mais ou menos relativa”, ostensiva ou cientificamente evidenciada, que se atribui às diversas determinações das unidades do sócius (em especial o indivíduo que o marxismo chamava “burguês”). Mas o que cremos ser o cerne do assunto que queremos precisar é que a heterogênese entendida como diferença de natureza implica em que os processos em jogo não são humanos, são in-humanos, em nada se parecem aos humanos e produzem, tanto subjetividades territoriais sobre-determinadas por múltiplos vetores, como subjetivações não evidenciáveis enquanto formas subjetivas conhecidas localizáveis no sócius.
Por outro lado, “interioridade”, em esquizoanálise, também pode admitir, no mínimo, três significados. A interioridade como intimidade (do sujeito íntimo, com seu mundo interno etc.), a interioridade como lugar circunscrito, mais ou menos auto e hetero limitado durável e estável, e a interioridade (entre) como oposta à mencionada exterioridade do Fora. As subjetividades têm como atributo definitório as duas primeiras acepções de interioridade. As subjetivações não apresentam interioridade nem exterioridade porque em seu campo de realteridade tais dimensões não têm vigência, assim como em seus modos de atualização são tão estranhas que talvez não se tenha conseguido formular os esquizoemas que dêem conta delas. Como será a “interioridade” e “alteridade” singulares das subjetivações dos rizomas crítico-militantes-internéticos mundiais, que, em enorme proporção são heterotópicos, heteróclitos e anônimos?
RESUMO:
Neste breve trabalho, nos propusemos tentar definir com certa precisão (inexata, porém rigorosa) os esquizoemas (unidades expressivas semióticas da esquizoanálise. G. Baremblitt) produção de subjetividade e produção de subjetivação. Empreendemos este ensaio por considerar que, ainda que no conjunto da obra esquizoanalítica sobrem recursos para clarificar essa diferença, a mesma não está inteiramente explicitada. Parece-nos que sintetizar essas definições pode ter importância para seus diversos empregos pelos esquizoanalistas.
Temos a impressão de que, basicamente, as citadas insuficiências ou confusões sobre o tema resultam de não enfatizar suficientemente na diferença da “natureza” e a de “regime” dos processos e efeitos que intervêm nessas produções e suas resultantes.
Os processos da realidade (neste caso sua participação na produção de subjetividade e de subjetivação) têm articulações e resultados (realizações) que são sui generis.Os processos da realteridade (realidade outra, Fora ou Superfícies e processos produtivo desejantes. G.Baremblitt) têm sínteses, composições e individuações (ou atualizações) extra generis.Os dois têm a mesma natureza, mas diferentes regimes.
A leitura esquizoanalítica já dá uma importante contribuição ao postular que, no nível da realidade, a produção de subjetividade inclui vários vetores independentes e às vezes contraditórios. As sínteses disjuntivas excludentes e as conjuntivas desses elementos fazem com que unidades do sócius tais como indivíduo, sujeito, persona, sejam emergentes em posição de “terminais” de outras, tais como grupos, organizações e redes sociais, assim como parques científicos tecnológicos historicamente desenvolvidos. Todas essas unidades se apresentam à percepção ostensiva e à leitura disciplinar como separadas e específicas, mas, amiúde, também aparecem e são unidas ou mimetizadas umas às outras. Os processos produtivos desejantes realteritários geradores dessas subjetividades e alteridades são os mesmos que gestam a produção de subjetivações, mas predomina em sua composição a produção de reprodução e de antiprodução modulados por codificações sobrecodificações e axiomatizações do sócius.
O mais importante aporte da esquizoanálise, porém, pode ficar algo desvaído se não se insiste em que, no nível da realteridade, nos processos que geram as subjetivações, predominam os produtivos, desejantes, revolucionários. Por outro lado, suas entidades produzidas, no nível do sócius, o são no seio de multiplicidades caosmóticas, que não param de crescer sem mudar, as quais, são, por sua vez, singularidades. É por isso que as individuações de subjetivação não tomam as unidades convencionais ostensiva ou disciplinarmente “decifradas” do sócius como “terminais”. Tampouco sua alteridade produzida recorda as correspondentes às subjetividades do mesmo cunho e não necessariamente exigem uma ato-referência nem uma interioridade. As subjetivações decompõem por completo e reagrupam como bricolagens as funções subjetivantes, e as reacoplam segundo distribuições e consistências inteiramente insólitas, chegando até a criar novas funções (que freqüentemente qualificamos e desqualificamos como “paranormais” ou “mágicas” ou reduzimos às conhecidas). As alteridades das singularidades estão dadas pela singularidade em si, que as faz infinitas, assim como também são outras de si mesmas. Em conseqüência, não é que não podem efetuar-se através das figuras de individualidade ou coletividade constituídas, mas o fazem decompondo-as e recompondo-as ao extremo de torná-las irreconhecíveis.
Se as figuras das unidades e processos da superfície de registro-controle não se parecem em nada às da superfície de produção desejante, as figuras e processos da subjetivação no nível do sócius não se parecem em nada com as da subjetividade. É por isso que, quando as linhas de fuga, quantas, as partículas, as vibrações etc. que a variação contínua das máquinas abstratas faz escapar nos dispositivos, as decodificações de sobre-codificações e desterritorializações se recompõem como territórios existenciais proteiformes, fluídicos e exóticos. Para sensibilizar páticamente os mesmos, é preciso recordar que as subjetivações não são realizações de possíveis (como às vezes Guattari sustenta), senão, atualizações do virtual, assim como boa parte deles transcorre e atua devindo imperceptível.
Apenas como exemplo: não é irrelevante o protagonismo atual da subjetivância das multidões contemporâneas por relação ao Estado, a partidocracia, ao mercado, às igrejas ecumênicas e a saturação propagandística, a do espetáculo e a do marketing. Mas, do que se trata, é da nada fácil tarefa de diagnosticar quando funcionam ou não, como autênticas minorias singulares revolucionárias, apesar de, o segundo, as modulações de seu suporte multitudinário. As ondas de difusão contagiosa das pequenas transformações (às quais se referia Tarde) não são visíveis, são mais “correntes submarinas” imanentes.
Quando nos incorporamos heurística, intervencional ou protagonisticamente a processos de subjetivação, todavia, o fazemos como humanos, demasiadamente humanos, em territórios existenciais demasiado hominizados.
As individuações por hecceidade, que incluem subjetivações ad hoc, e cuja singularidade intensiva e pregnante é sua apresentação – um verão, uma cor (uma data, um nome-não um autor) e um espaço (melhor que um sítio ou um lugar)- são processos e efeitos sem sujeito, compõem sempre subjetivações. Mas, se parece estar claro para todos que as mesmas dissolvem o eu, o corpo orgânico e os corpus lingüísticos, assim como as corporações organizacionais etc., não está tão claro como distribui e atribui faculdades em suas bricolagens, nem os cromatismos musicais com que as polifonias de vozes expressam neles.
É árduo assimilar que cada um de nós e dos outros são internamente muitos, tanto quanto um nome ostensivo identitário e unitário contém todos os nomes da história; e que trabalhar com fluxos é muito diferente de trabalhar com entidades e representações que recordam às do registro civil. O político profissional é um expert em ser afetado pelas singularidades nascentes, sem nome nem forma, para suprimi-las, reprimi-las ou normatizá-las. Nós, esquizoanalistas, temos que aprender como se faz isso com uma intuição inventivo revolucionária.