ACERCA DO PSICANALISMO, DE ROBERT CASTEL*

Autor: Gregorio Baremblitt

O gentil pedido de uma opinião acerca desse clássico livro gerou em mim sentimentos intensos e às vezes contraditórios, assim como me despertou algumas interrogações. Começarei permitindo-me formulá-los em um tom “confessional”.

Em primeiro lugar: – por quê será que um texto, paradoxalmente, por um lado irrefutável e superado, se torna tema de polêmica quase trinta anos depois de publicado? – Será como expressão de sua vigência, ou das resistências que encontrou? Isto me alegra, mas me deixa perplexo.

Em segundo lugar: durante duas décadas, tive oportunidade de relacionar-me com um número considerável de psicanalistas “oficiais”e constatar que apenas uns poucos haviam lido tal escrito. Por outro lado, tive acesso a uma só resposta psicanalítica, publicada em um livro de Elizabeth Roudinesco, na qual o argumento de mais “peso” da mencionada autora consiste em “diagnosticar” Castel como “estalinista”. Isso me entristece (porque, para mim, Castel é um dos intelectuais mais libertários que li, além de ser uma das pessoas mais encantadoras que conheço). Mas isso não me surpreende.

Em terceiro lugar: nunca deixarei de sentir-me estupefato frente à capacidade de ignorar, ou de assimilar sem reconhecer as fontes ou racionalizar de acordo com sua conveniência que a psicanálise (dito em um sentido mais amplo que mais adiante definirei) demonstra. Talvez só o capitalismo em geral e a igreja católica em particular podem igualar-se à psicanálise nessa habilidade gatopardista de “mudar, trocar, para que tudo siga igual”. Isso sempre me assustou, mas, ao mesmo tempo, me dou conta de que essa questão, no que se refere à psicanálise, quase deixou por completo de interessar-me.

Agora bem, indo diretamente ao que importa, a principal tese de Castel, parcialmente “traduzida” a uma terminologia institucionalista mais comum, consiste no seguinte: a psicanálise, enquanto disciplina (se pretenda científica ou não), tem uma teoria, um método e uma técnica que lhe são próprios e exclusivos, o que não impede, senão pelo contrário, implica que, tanto o conteúdo específico como os valores neles implícitos, se inscrevam como ideologias “teóricas” e “práticas” nos sistemas de representação, no imaginário, nas atitudes, nas concepções e ações sociais (ou como queira chamá-los) que lhe são contemporâneos. De outro lado, por mais que essa teoria, método e técnica hajam alcançado certo limiar epistemológico disciplinar, nem por isso deixam de estar embebidos, infiltrados etc. por ideologias discursivas, textuais e operacionais que nela subsistem como remanescentes pré – fundacionais, assim como com as quais são coexistentes e concomitantes.

Além disso, a psicanálise não apenas é uma disciplina que se define por um saber e fazer específicos, mas também é, intrinsecamente, uma profissão, que, como todas as outras, implica o exercício de um poder, a obtenção de uma ganância e adjudicação de um prestígio sui generis.

Mais ainda, a psicanálise se compõe também, inerentemente , de um movimento social, de organizações sectárias, de um arsenal publicitário e editorial, algumas de cujas funções consistem em produzir demanda de serviços, recrutamento de candidatos a agentes, de formação dos mesmos etc. Finalmente, a psicanálise gerou, a partir de seu equipamento tradicional (o chamado “tratamento individual”), uma série de “aplicações” cuja legitimidade muitos psicanalistas preconizam no campo da educação, saúde, justiça, trabalho, comunicação de massas, famílias, grupos, organizações, empresas, políticas públicas etc.

A essa expansão cultural e operacional, Castel chama “ampliação ideológica em círculos concêntricos a partir do divã”, sendo que poderíamos denominar “assimilações” ao conjunto de processos inversos, de remanescências pré-fundacionais e das influências atuais que antes mencionamos.

Dadas todas essas implicações, e tal como ocorre de modo relativa, mas efetivamente inevitável com todas as disciplinas profissionais, por mais extraterritoriais que se autoconsagrem, a psicanálise está determinada por causalidades heterogêneas, heterólogas e heteronômicas para conhecer e neutralizar as quais carece, por definição, de um instrumental pertinente, mais além, ou mais aquém da pretensão de consegui-lo com seus próprios recursos disciplinares. Essa peculiaridade constitutiva faz com que a psicanálise ignore, ou que não desconheça, mas se creia capaz de “neutralizar” ou abster-se dos efeitos supostamente “espúrios” das citadas causas: sua cumplicidade com a exploração, a dominação e a mistificação históricas de seu entorno.

A isto se agrega que a psicanálise está segura de ter muito a dizer acerca de todas as outras disciplinas profissionais (e sobre qualquer outra coisa), à medida que os enunciados e textos das mesmas têm a ver com o “sujeito” e seu inconsciente, tal como a psicanálise o concebe. O extraordinário é que essa teoria não costuma considerar, nem assumir, o que todos os outros saberes e fazeres têm a dizer a seu respeito, e as poucas vezes em que o considera e incorpora, o faz sem reconhecer a origem da crítica em questão, cujos “direitos de autor” invariavelmente são atribuídos a si mesma, tanto quanto a impugnação é “podada” e atendida de forma que o que é supostamente essencial não mude. Mas isso não é tudo. Segundo Castel, a psicanálise é a única disciplina que conseguiu incorporar ” de jure” as exigências ” de fato” que lhe formula sua condição profissão, uma real “identificação” entre o estatuto de uma especificidade e o contrato de uma prestação de serviços rentáveis. Por exemplo, sua relação com o dinheiro, que levou Lacan a dizer que cobrava caro suas sessões para que os “analisandos” pudessem valorizar a importância do “puro nada” que lhes dava em troca.

Escrevi mais acima que essa obra de Castel é tão irrefutável como superada. O mesmo Castel esclarece que se trata da crítica da especificidade e profissionalismo feitos desta obra: uma espécie de etnosociologia que não é intra nem meta psicanalítica. É com a esquizoanálise de Deleuze e Guatari que a crítica à psicanálise chega ao apogeu, porque não se abordam apenas as relações de exterioridade entre a psicanálise, a ideologia e o poder, mas também as de imanência, quer dizer, que a psicanálise e seu objeto são definidos como peças essenciais da produção de subjetividade capitalística, que se esboçam no modelo de produção primitivo, se consolidam nas formações imperiais asiáticas de soberania e advém interiorizada com o universal no “homem íntimo” (imagem derivada da axiomática do capital), junto com a disciplina que “descobre” e convalida seu estatuto universal e se ocupa de seu “serviço” interminável. Tais artefatos não melhoram demasiado por serem sofisticados com recursos filo-estruturalistas, topológicos, ou matêmicos de

formalização, pelo contrário, esses “refinamentos” (ainda mais hieráticos e herméticos) não fazem senão evidenciar mais “pura” e fundamentalmente sua função reprodutiva da lógica do capitalismo.

 

*Artigo publicado na revista mexicana Subjetividad , 2006.

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